24/01/2010

Olhar e Chorar


Notável criatura são os olhos!
Admirável instrumento da natureza; prodigioso artifício da Providência!  Eles são a primeira origem da culpa; eles a primeira fonte da Graça. São os olhos duas víboras, metidas em duas covas, e que a tentação pôs o veneno, e a contrição a triaga. São duas setas com que o Demónio se arma para nos ferir e perder; e são dois escudos com que Deus depois de feridos nos repara para nos salvar.
Todos os sentidos do homem têm um só ofício; só os olhos têm dois. O Ouvido ouve, o Gosto gosta, o Olfato cheira, o Tato apalpa, só os olhos têm dois ofícios: Ver e Chorar.
Estes serão os dois pólos do nosso discurso.


Ninguém haverá (se tem entendimento) que não deseje saber por que ajuntou a Natureza no mesmo instrumento as lágrimas e a vista; e por que uniu a mesma potência o ofício de chorar, e o de ver?
 O ver é a ação mais alegre; o chorar a mais triste. Sem ver, como dizia Tobias, não há gosto, porque o sabor de todos os gostos é o ver; pelo contrário, o chorar é o estilado da dor, o sangue da alma, a tinta do coração, o fel da vida, o líquido do sentimento.

Por que ajuntou logo a natureza nos mesmos olhos dois efeitos tão contrários, ver e chorar?
A razão e a experiência é esta. Ajuntou a Natureza a vista e as lágrimas, porque as lágrimas são consequência da vista; ajuntou a Providência o chorar com o ver, porque o ver é a causa do chorar.
Sabeis porque choram os olhos? Porque vêem.

Padre António Vieira, in "Sermões"

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