Não há nada que resista ao tempo. Como uma grande duna que
se vai formando grão a grão, o esquecimento cobre tudo. Ainda há dias pensava
nisto a propósito de não sei que afecto. Nisto de duas pessoas julgarem que se
amam tresloucadamente, de não terem mutuamente no corpo e no pensamento senão a
imagem do outro, e daí a meia dúzia de anos não se lembrarem sequer de que tal
amor existiu, cruzarem-se numa rua sem qualquer estremecimento, como dois
desconhecidos.
Essa certeza, hoje então, radicou-se ainda mais em mim.
Fui ver a casa onde passei um dos anos cruciais da minha
vida de menino. E nem as portas, nem as janelas, nem o panorama em frente me
disseram nada. Tinha cá dentro, é certo, uma nebulosa sentimental de tudo
aquilo. Mas o concreto, o real, o número de degraus da escada, a cara da
senhoria, a significação terrena de tudo aquilo, desaparecera.
Miguel Torga, in "Diário (1940)"
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