13/06/2013

A Subjectividade do Amor-Próprio

Um mendigo dos arredores de Madrid esmolava nobremente. Disse-lhe um transeunte: 
- O senhor não tem vergonha de se dedicar a mister tão infame, quando podia trabalhar? 
- Senhor, - respondeu o pedinte - estou-lhe a pedir dinheiro e não conselhos. - E com toda a dignidade castelhana virou-lhe as costas. 
Era um mendigo soberbo. Um nada lhe feria a vaidade. Pedia esmola por amor de si mesmo, e por amor de si mesmo não suportava reprimendas. 
Viajando pela Índia, topou um missionário com um faquir carregado de cadeias, nu como um macaco, deitado sobre o ventre e deixando-se chicotear em resgate dos pecados de seus patrícios hindus, que lhe davam algumas moedas do país. 
- Que renúncia de si próprio! - dizia um dos espectadores. 
- Renúncia de mim próprio? - retorquiu o faquir. - Ficai sabendo que não me deixo açoitar neste mundo senão para vos retribuir no outro. Quando fordes cavalo e eu cavaleiro. 
Tiveram pois plena razão os que disseram ser o amor de nós mesmos a base de todos as nossas acções - na Índia, na Espanha como em toda a terra habitável. Supérfluo é provar aos homens que têm rosto. Supérfluo também seria demonstrar-lhes possuírem amor próprio. O amor-próprio é o instrumento da nossa conservação. Assemelha-se ao instrumento da perpetuação da espécie. Necessitamo-lo. É-nos caro. Deleita-nos - E cumpre ocultá-lo. 

Voltaire, in 'Dicionário Filosófico'

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